Discos da Minha Vida | Pevê | Compositor e Instrumentista

Essa série de postagens inclui os discos que marcaram minha vida ao de quase três décadas como colecionador de discos e afins. Cresci numa casa onde escutávamos muita música e, entre minhas memórias mais longínquas, estão as audições dos discos coloridos recheados de histórias infantis, as tardes de domingo com música portuguesa, italiana, e muito Roberto Carlos. Entretanto, o primeiro disco a “marcar” minha existência, de forma definitiva e profunda, foi o Lp “As Profecias”, do saudoso Raul Seixas (WEA, 1991). De lá, pra cá, nunca deixei de comprar discos e me emocionar com cada aquisição, com cada encarte lido, cada canção. Grande parte do que eu me tornei foi por influência da música, das artes em geral.

As Profecias – Raul Seixas (WEA, 1991).

Aos 16 anos eu ganhei esse disco de presente de natal. (foto 1 e 2, 3,4). Me foi dado pelos meus pais e comprado numa famosa loja de departamentos do bairro onde minha família mora até hoje. (Lojas Hermes Macedo) (foto 5) Uma estreia e tanto ao mundo do vinil! Sua influência persiste, tanto em termos musicais quanto filosóficos e também afetivos. Trata-se de uma coletânea, contendo apenas uma gravação inédita, recheada de “pedradas” do mestre Raulzito. Fui pescado pela febre do rock and roll, em português, e pelas letras ácidas do mestre.

O Brasil de 1992

O país vivia num clima esquisito, tínhamos realizado a ECO 92 (junho) e o mundo entrava numas de consciência ecológica, legítima em certos setores da sociedade, porém completamente falaciosa em outros. O time mais popular do Brasil fora campeão brasileiro de futebol, felicidade total. O então presidente Collor, conhecido como “o caçador de marajás”, sofre um impeachment em setembro e, no mês seguinte, a opinião pública tinha sensações antagônicas, relacionadas ao episódio conhecido como o massacre do Carandiru, em São Paulo. Clinton derrotava a dinastia dos Bush em novembro e eu… Bem, em 1992 eu tinha 16 anos e estava completando o segundo grau (hoje, ensino médio), dando graças, pois estava de saco cheio da escola. Tornou-se uma situação insustentável, um verdadeiro martírio que piorava com minha vida pessoal, completamente caótica. Foi um ano difícil, de pouca grana e muito trabalho, e eu cada vez mais crítico e insatisfeito, encerrado em meus livros de autores beat, meus discos e as paredes do quarto.

As minhas preferidas do LP

O disco abre com uma versão arrasadora da politicamente incorreta “Rock das Aranhas” (Gravado no final de 1988, no programa “Estúdio Ao Vivo” da Rádio Transamérica/SP), onde Raul, após dedicá-la a algumas figuras estelares da MPB, divide os vocais com o pupilo Marcelo Nova. Energia pura! A canção “O dia em que a terra parou” é a segunda faixa. Que nome sensacional para uma canção. Versa sobre a possibilidade de um mundo sem doença, sem trabalho, e sem violência. Raul era fã devoto do Lennon, utopia e distopia sempre estiveram presentes na sua vasta produção musical. Uma das minhas preferidas é o sucesso “Maluco Beleza”, lindamente cantada em falsete, onde Raul traz a lucidez e a loucura como temas centrais, o deslocamento do mundo e o descontentamento com o establishment. Uma observação: detesto a expressão maluco beleza, mas adoro a canção. A balada “A Maçã” discorre sobre relacionamentos afetivos e liberdade, as vezes nem sempre compatíveis. “Coração Noturno” é pura poesia e tem o refrão “bom dia Sol, bom dia”, é Raulzito positivo, cultuando as coisas triviais da vida, utilizando jogos de palavras que descrevem as maravilhas de um dia que inicia. “Metrô 743” é uma espécie de wertern Dylaniano acústico, um filme musicado, onde a descrição das cenas impressiona. O pensar é colocado como perigo, como objeto de perseguição, talvez resquícios da ditadura brasileira que Raul “tão bem” conheceu, uma “paranoia” justificada em função da truculência dos militares. A Dylaniana “Sapato 36” foi sem dúvida a que mais me impressionou à época. O tema é apropriado para qualquer adolescente do planeta: o conflito de gerações, o afogamento dos sonhos, a dificuldade de diálogo entre um filho e seu pai, a angústia e, por fim, a separação. Em certa altura Raul diz “já escolhi meu sapato, que não vai mais me apertar”… Simples e complexo, profundo. “Por quem os sinos dobram”, um rock roots com piano marcante que traz o refrão “coragem, coragem, se o que você quer é aquilo que pensa e faz, coragem, eu sei que você pode mais”, anunciando que todos somos capazes, basta querer. Baita canção, um exemplo da beleza que é um bom rock composto e cantado em português. “Carpinteiro do Universo”, com Marcelo nova, é canção tocante, uma das que eu mais curto. Autobiográfica, com interpretação de um Raul já bem debilitado pelo alcoolismo, de tanto “tentar mudar a direção do trem”,“de tentar consertar o que não pode ser”, o mestre se cansou. Acredito que não cabia nesse mundo tanta utopia e, por outro lado, tanto senso crítico sobre a sociedade. O trampo de pedal steel, do glorioso Rick Ferreira, é lindo demais e os músicos estão afiados, como sempre. “Tente outra vez”, balada clássica que incita: “tenha fé em Deus, tenha fé na vida”, “você será capaz de sacudir o mundo”, “Tente outra vez”. Um elixir de esperança para seguir em frente. Essa gravação tem a sonoridade que eu gosto: mixagem com baixo na “cara” e bateria com som “seco”, bem setentista. A guitarra está um luxo também.

Acredito que a maioria das faixas tenha sido executada pelos fiéis escudeiros do Raul, um verdadeiro dream team do rock brazuca: Rick Ferreira (violões, guitarras, pedal steel, e outros), Paulo César Barros (Baixo), Mamão (Bateria), Miguel Cidras (teclas e regência).

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